Cinza
– Sinto muito, mas não
posso lhe fornecer essa quantia. – as sobrancelhas do agiota apertavam-se em
sua face, quase encontrando uma a outra em uma expressão exasperada e que
causava certo volume de rugas.
O rosto cansado do
homem fitava o outro, inexpressivo.
– Mas você não pode me
negar algo...
– Por que, senhor
Gonçalves? Por que tu és um homem da alta sociedade?
– Porque necessito
dessa quantia, você mais do que ninguém sabe o quanto ela me é necessária.
– Pensasse nisso antes
de acumular dívidas e torrar sua fortuna em apostas sem fundamento, meu caro.
Não vou lhe acobertar, não novamente.
– Mas eu tenho uma
reputação a manter.
– E eu uma fortuna, não
posso gastá-la sem garantias de retorno.
– Tem minha palavra!
– De nada ela vale
agora, o único valor que a ela pode ser atribuído são os de míseros centavos
que mendigos sem esperança recebem na rua de senhoras caridosas.
– Não posso crer no que
estou ouvindo. Tais blasfêmias perpetuam meus ouvidos...
– Antes uma blasfêmia a
seus ouvidos que uma preocupação ao meu coração. Faça o favor de retirar-se,
estamos conversados.
Gonçalves estava falido
e o homem perante ele era o único que tinha conhecimento disso. Sua vida
farrista de gastos desenfreados afundou sua empresa de remédios à amargura, e
junto com ela, ele e sua família.
Como voltaria para casa
e contaria tudo? Como sua esposa que tanto ama reagiria com tal impacto?
Eram perguntas que sua
mente elaborava e criava as respostas, articulava os fatos, imitava as cenas.
Nada do que imanara era positivo, tampouco estaria próximo a isso.
O agiota lhe lançou um
último confronto de olhar e sentou-se na cadeira de seu grandioso escritório
com livros de filosofia e literatura barata nas prateleiras.
Gonçalves ajustou seu
chapéu na cabeça, girando-o disfarçadamente e portando-se à saída. Cruzar
aquela porta pesada de madeira e detalhes em aço nunca fora uma tarefa tão
complicada.
A rua do outro lado não
continha mais o mesmo brilho de anteriormente, o dia nublado e com pessoas
ocupadas demais para repararem nos detalhes da manhã dificilmente poderia ser
atrativo para quem quer que fosse, principalmente um homem falido.
O baque sonoro da porta
ecoou atrás dele após ser fechada com um forte solavanco do secretário do
agiota.
Passos desprovidos de
qualquer alegria passaram a conduzir Gonçalves por um percurso que já fora
mecanizado por sua mente tempos distantes.
A preocupação era
irrefutável, fazia as têmporas em sua cabeça vibrarem de modo descompassado.
Ele observava portas de
diversos estabelecimentos e casas a sua volta, sem pretensão nenhuma.
– Gonçalves! – um
chamado eufórico partiu de um bar de esquina abarrotado de fregueses que bebiam
desenfreadamente e consumiam tanta fumaça de cigarro que chegavam a perder-se
em meio a ela.
A atenção do homem
falido foi de encontro ao chamado, desafortunado de qualquer entusiasmo.
– Gonçalves, meu grande
amigo, que coincidência absurda encontra-lo por estas ruas. – era Pedro que se
aproximava com um sorriso auspicioso que sempre o acompanhava. Aquele sorriso
era uma marca ímpar de um ser que jamais demonstrava inquietações e sempre era
um alicerce para os amigos.
Gonçalves estendeu a
mão para cumprimenta-lo e limpou o ar em seu rosto para não denunciar qualquer
evidência a respeito de seu grande fracasso.
– Estou apenas de
passagem, meu amigo. – disse o falido sem mais rodeios. – Tenho de ir para
casa.
– Mas o que é isso?
Esse não é o Gonçalves que conheço! – Retesou. – Vamos beber conosco, estão
todos lá dentro. – Apontou para o bar, de onde alguns homens acenaram em risos
lúgubres de alcoolismo.
– Não posso.
– Como não pode? – Estranhou.
– Está negando um convite de seu amigo? – riu. O terno bege que o vestia
esbanjava um luxo glamoroso que apenas os donos de joalherias poderiam ofertar,
um lenço vermelho em seu bolso apresentava a cor mediúnica do pecado aos olhos
de um homem confuso. – Eu pago sua bebida. Vamos sente-se conosco!
Gonçalves pensou duas,
três vezes antes de que qualquer palavra pudesse cruzar sua garganta ressecada
pela falta de água unida a taquicardia dos últimos momentos. Quem sabe beber um
pouco com amigos poderia ser útil para afogar um pouco de suas mágoas,
precisava disso.
Não recusou o convite e
entrou com Pedro no recinto, inalando a fétida fumaça do fumo e deixando que
seus olhos entristecidos ardessem com o sabor amargo da bebida.
Em circunstância
alguma, deixou que o álcool falasse em demasia por ele. Não tocou no assunto
que tanto o atormentava e arrancava o sono a que devia lhe pertencer.
Bebeu por longas duas
horas e trinta reais.
Por fim, mesmo com a
insistência exagerada do amigo, ele foi embora, com a consciência amargurada e
pesada.
Seus pés o guiavam por
ruas que sua mente desenhava estranhas a suas retinas, os trajetos que tomava o
levavam a todos os lugares e ao mesmo tempo a lugar nenhum.
Gonçalves estancou
quando seu sapato de couro e mal engraxado chutou inconsequentemente uma
carteira na calçada.
Era uma carteira de
marca, com um revestimento luxuoso que concebia a ela um valor muito acima da
média.
O homem falido
suspirou, seus dedos trêmulos tocaram a carteira após ele se certificar de que
ninguém o estava olhando.
Abriu-a finalmente e
encontrou a solução para seus problemas.
Havia um amontoado de
cédulas de alto valor. Dinheiro o suficiente para quitar sua grande dívida em
jogos e ainda algumas adicionais que os meses trouxeram à sua caixa de
correios.
Estudou-as, sentindo o
eflúvio que delas exalava, desfrutando da maciez única a que a elas pertenciam.
Uma batalha tinha sua
gênese em seu subconsciente.
Era certo pegá-la?
Deveria?
Gonçalves abriu os
bolsos da carteira, os dedos trêmulos e os movimentos apressados e sem
habilidade. Encontrou cartões de crédito, lista de compras, propaganda de plano
de saúde, bilhetes que provavelmente eram endereçados a uma dama – os quais não
se atreveu a ler – e, por fim, um cartão de visitas.
Assustou-se.
O cartão tinha dados
que ele conhecia, números e referências com as quais era acostumado há anos, e
por fim um nome: Pedro Alves Consuelo.
Seu melhor amigo de
décadas, era a ele quem pertencia aquela pequena fortuna, era dele o
instrumento que poderia salvar Gonçalves da miséria de suas dívidas e limpar
seu nome antes que a alta sociedade desconfiasse de qualquer coisa a seu
respeito.
Perguntava-se
novamente, deveria?
Aquilo sem dúvidas iria
salvá-lo, iria dar a ele o poder de comprar presentes a sua amada esposa.
Ninguém precisaria
ficar sabendo, afinal ninguém o viu pegando a carteira, ele nunca tocaria no
assunto, trairia seu melhor amigo.
E se alguém o tivesse
notado pegar algo do chão? Nunca se sabe, há janelas por todas as partes,
binóculos para os que querem enxergar fatos ao longe.
E se por algum acaso
ele acabasse levando o assunto da carteira adiante? Se ele mesmo denunciasse
seu furto? Sua traição ao melhor amigo?
Relutava.
A bebedeira de horas
atrás não o auxiliava muito.
Apesar de tudo, por
alguns segundos esteve decidido a pegar a carteira para si, mas voltou a pensar
melhor...
E se o amigo acabasse
dando parte a polícia?
Então ele confiscaria
apenas o dinheiro e devolveria a carteira para Pedro com a desculpa esfarrapada de
que a encontrou na rua sem cédula nenhuma.
Mas que tipo de ladrão
seria esse? Que rouba uma carteira e deixa a evidência a ser investigada?
Gonçalves nunca se viu
em uma situação tão atenuante, martirizava-se. Tentava encontrar formas de
solucionar aquele entrave, queria o dinheiro, precisava dele, mas também
precisava do amigo.
Não podia simplesmente
trair uma amizade tão duradoura e verdadeira, jamais Pedro faria isso com ele,
faria?
Ele gritou como o
bêbado que era.
Guardou a carteira
enquanto pensava mais sobre o assunto.
Perambulou durante
horas e mais horas pelas ruas daquela cidade que ia se desertificando com o
passar do pôr do sol e o cair da noite.
Os tantos postes de luz
mal conseguiam clarear os tantos caminhos enevoados de sua aflição.
Chegou a chorar, chegou
a caminhar sobre a ponte do rio que cortava a cidade. Não cumprimentou ninguém,
e ninguém o cumprimentou. Se algum rosto conhecido cruzou seu caminho, passou
despercebido.
Ao findar da oitava
badalada do relógio da catedral, ele girou a maçaneta de sua antiga casa e
entrou na sala de estar.
Ali estava sua esposa,
sentada no sofá com uma preocupação visível em seu rosto e ao lado dela, seu
grande amigo, Pedro.
Olharam-no quietos, não
falavam absolutamente nada, deixavam que suas expressões questionassem por
eles.
– Estou bem. – ele
disparou. – Apenas me atrasei um pouco, aconteceu um imprevisto.
Gonçalves fechou a
porta atrás de si e enfiou a mão em seu bolso, retirando do interior mais
profundo dele, a carteira do amigo.
Entregou-a nas mãos do
verdadeiro dono, que a recebeu com um olhar infame e consternado.
O silêncio era
sepulcral.
Gonçalves deu um beijo
na mulher irritado com a reação de Pedro e saiu em direção ao quarto. Antes se
tivesse ficado com a carteira, não esperava em instante algum que o amigo o
agradeceria daquela forma: desconfiado. Esperava no mínimo ouvir um “obrigado”
e ganhar um aperto de mão.
Pedro enfitou a esposa
de Gonçalves quando este já estava longe da sala de estar. Ela centrava um
semblante igualmente consternado como o dele.
Pedro abriu a carteira
e não se importou em momento algum com as notas que nela estavam, pegou primeiramente
os bilhetes que Gonçalves se recusou a ler e os abriu. Estavam intactos, sem
comprovação de qualquer toque do homem falido.
Pedro suspirou
profundamente, confortado.
Ele curvou-se para a
esposa do melhor amigo com pretensões maliciosas. Trocaram um beijo saliente e
depois ele foi embora.
O bilhete com as mais
belas palavras de amor era confidenciado à verdadeira remetente dele.
Mateus Lins
Mateus Lins